Do tsunami à seca – Viva o chorume

por
Adler Correa
Lucas Honorato
Luiz Fernando Rodolfo

Impressões emocionados feitas num vapo

Hoje vi Rodson e ainda não sei onde o sol toca, mas com certeza entrei na jornada do jovem rapaz. Tem alguns pontos do filme que me encantaram de uma maneira absurda. Além de ser uma espécie de Menino e o Mundo fritado num jodorowsky remixado nas profundas camadas da Web por um viajante no tempo, é um filme dos desajustados, dos errantes que transcendem e se aterram mas sobretudo dos que se debocham e debocham dos outros. A sátira aqui de um futuro distópico é muito bem atravessada pelas constantes bad trips, ou Brisa errada como diria a minha amiga Amanda Treze.

Esta brisa torta é produzida por diversos fatores, a família tóxica, frustrações do estado e vida profissional, pela condição climática, pela humilhação que toda a vida pode gerar. E claro, se tu beber uma água estranha ou tomar chorume essas viagens também podem acontecer. O filme realizado coletivamente em várias denominações consegue muito bem organizar as diversas visões e referências formais que ali estão de um jeito elegante no meio dessa explosão sensorial.

O filme compreende a falta de frame, de definição e divagações sobre texturas mescladas e de um obturador constantemente aberto para quando quer causar incômodo ou quando quer brisar. Há além de uma consciência e elegância, uma organicidade encadeada por cada mise en scene. A cena antes de Rodson fugir de casa, onde a bad trip “estrala” de uma maneira tão intensa que os gritos, o vermelho e o step printing me levam a um leve estado de ansiedade que é impecável naquilo que o cinema mais brilha, a provocação de sentimentos.

Tanto quando Rodson materializado em 8 bits sai de casa, quanto quando há as imagens de estrada feitas dentro de ônibus e carros eu só consigo pensar em meus amigos, e algumas viagens feitas por nós e outras que ouvi que eles fizeram e penso: Maaaano, esse filme é um tanto mais que uma roadtrip e é uma roadtrip da nossa geração, dos sem futuro, do sem água.

Mesmo que o filme seja sobre um futuro distópico e altamente caótico, a sátira constantemente encontrada no filme faz com que ele se mantenha autorísivel e crítico tanto da geração atual e suas questões “transcendentais” e políticas, quanto questiona e ridiculariza os ditames da classe média brasileira, religiosa e da violência estatal. – Sério, uma polícia sadomasoquista é ao mesmo tempo redundante e desafiadora sem que seja uma grande “crítica social fuderosa”.

Rodson e Caleb, robô que transcende a vontade de buscar conhecimento de Rodson, são uma espécie de esperança no mutualismo. Mas além da esperança ao Mutualismo o filme enxerga em vários pontos uma esperança na coletividade. É na gangue da Cavalona Dichavada que vemos esperança de apoio a Rodson e também para o nosso presente. É nas besties da Melindra Lindra que há um resgate de uma pessoa deixada para trás e é na formação da Banda Glamourings que vários elementos do filme se unem e se incrementam. E é pelo afeto que é o momento de maior êxtase de fritação que Rodson recebe. Em completa oposição do desafeto familiar que recebe no início.

Nessa sequência as dimensões do quadro e seus limites ganham cada vez menos bordas, além da dos nossos dispositivos. O filme em diversos momentos limita o quadro em formatos diferentes, seja em 4:3, Scope e outros. Nessa hora a mescla de incontáveis quadros me coloca em transe e o meu maior foco é o da música debochadissima sobre a conspiração da água como veneno (Aliás a água é um dos elementos centrais do filme), e quando eu me percebo em transe eu já não sei aonde o quadro importa e começo a desejar assistir obras assim em realidade virtual. Se o vídeo já transcende o filme, a realidade virtual vai transcender o meu… Senso de percepção audiovisual que anda felizmente em parafusos.

Compreendo que ao trazer uma linguagem de meme pop para um longa metragem o filme arrisca ser visto como modista exagerado ou inconsistente eu só consigo enxergar elegância, consistência e honestidade. Teve um dado momento logo nos primeiros 10 minutos do filme que me passou na cabeça a possibilidade de uma tentativa dadaísta, forçada e exagerada de brisa do filme. Mas a cada passo dado por Rodson, cada esquete ia se organizando na minha cabeça que o filme mesmo tendo a sua experimentalidade, ele está inserido numa linearidade muito palatável e justificada. (Não que pra um filme ser honesto ou bom ele precisa ser palatável, linear e até justificado kkkk, mas aqui são pontos de convergência que agregam valor com a sua formalidade virtual e gasosa).

Por fim eu adoraria dizer que gostaria de escrever sobre diversas coisas sobre este filme; Suas sátiras e aprofundar sua relação com as mídias e críticas e autocríticas; Sobre sua relação com a história do cinema, dispositivo e narrativa; Sua montagem que por sinal aliada com a manipulação de imagem é o que constitui amplamente a estrutura deste filme; e tantas outras coisas que mesmo não sendo inesgotável, porque nenhuma obra de fato é, RODSON ou (Onde o Sol Não Tem Dó) de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra, 2020 possui uma constelação espaço-temporal amplíssima!

Divagações secundárias feitas em dois vapo

Se cada filme refunda o que é o cinema e seus fundamentos, Rodson o faz na base da esculhambação locurada, do chorume, da morte de um “bom gosto” ou mesmo uma ideia de “bom cinema”. O longa se constrói numa multiplicidade de registros imagéticos e sonoros, se apropriando de diversas convenções da história do cinema ao mesmo tempo que taca um grande foda-se para todas elas. E não apenas do cinema. Há uma sensação de que todos os tipos de audiovisual possíveis tão ali, sobrepostos, enviesados, modificados. Live action, animação 3D, 8 bits, videogame, gif, figurinha do zap, telejornal, programa religioso, videoarte, meme, youtube, vlog, videoclipe. Rodson remixa tudo isso numa experiência colorida, bizarra, ácida, engraçada, satírica, experimental e suja. Ouvi uma coisa, acho que na live de abertura, e que sinto que se enquadra bem aqui: “processos de artesania”. Apesar da “estética lixo” é um filme extremamente trabalhoso em todos os aspectos. Cenários, figurinos, edições, movimentos de câmera, produção, materiais de arquivo, tudo de uma complexidade e diversidade enormes, costurados de uma maneira muito fina. Um trabalho manual mesmo, que exige um grande esforço e organização para se articular.

Fica uma impressão que se tu abrir o projeto do Premiere e for escavucando coisa por coisa vai encontrar material de tudo que é tipo de fonte e formato. As imagens e sons são ruidosos, lo-fi, mas fogem disso em diversos momentos pontuais, tornando o filme compreensível e não apenas uma experiência lisérgica insana. A obra se divide em pequenos arcos narrativos que mudam de maneira súbita, mas que juntos compõem uma jornada numa única direção. É um filme com início, meio e fim, mas esse caminho incorpora desvios e divagações. Se num momento Rodson é pacifista, no próximo ele é combativo e em seguida político. Após perder as eleições para presidência, ele se vê sem rumo na rua novamente e acaba virando conteúdo para a instagrammer Evy Maravilha, que aumenta a fama se aproveitando disso. Nos minutos seguintes o longa se transforma em uma sátira sobre o campo do cinema, suas práticas exploratórias, suas premiações e festivais para, só depois, retornar ao jovem protagonista.

O uso das cartelas e das legendas – da interferência gráfica textual – variam desde referências ao cinema silencioso e o filme biográfico, como também a menus de videogame, inserções que conversam muito bem com todo o filme. De uma hora pra outra, Rodson vira um bonequinho digital e vai andando em direção à cidade. A jornada dele parece funcionar como uma historinha de algum jogo. Ele vai passando de fase em fase, cada uma com seu ambiente, estética, personagens e desafios próprios. Estes diferentes estilos também se revelam no campo sonoro, com música que vão desde beats eletrônicos, trilhas 8bits, rock psicodélico, efeitos incidentais, até o bom e velho Raul Seixas. A trilha sonora dá conta de passar muito dos sentimentos e emoções, que principalmente (senão inteiramente) nosso protagonista vive. Ela acompanha o ritmo das imagens e da montagem, que conversam muito bem para compor a linha narrativa do filme.

ironia
substantivo feminino

  1. RETÓRICA (ORATÓRIA)
    figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado, para definir ou denominar algo.

Dizer que esse filme é irônico é quase uma ironia. Ao mesmo tempo em que ele é bem satírico e tira sarro em certos aspectos, sinto ser bem direto em outros. Um pastor cheirador que prega contra o comunismo me parece uma representação com uma intenção bem clara, mas toda forma como ele é apresentado dá o tom absurdo que beira o ridículo. Apesar do filme começar dizendo que passou pela comissão de censura, creio que, entre outros motivos, essa clareza de discurso faria ele ser barrado em algumas no “mundo real”. Saí dele com esses sentimentos mistos. Ele trabalha com essa ironia de uma forma tão explícita e grosseira, nem um pouco sutil, que fico questionando o uso da palavra ironia para tratar dele – mesmo que seja muito irônico.

Achei das construções (ou desconstruções?) mais interessantes de um futuro Brasil distópico que não romantiza esse presente caótico e absurdo, mas parte dele para extrapolar tudo o que pode estar por vir. Se continuarmos nesse ritmo de “ordem e progresso” não é irreal imaginar um cenário onde a água é venenosa, figuras da mídia perseguem supostos comunistas e há (ou seguimos tendo) uma milícia vigilante que censura a torto e a direito. Apesar disso, Rodson ainda encontra seu final feliz, em que após muitas andanças chega seu momento de tomar um banho tranquilo de rio escutando Raulzito.

Vejo em Rodson uma das mais representações interessantes da juventude de hoje. A sensação que dá é de que ele engloba quase todos os espectros possíveis dela. Ele já foi gamer, pacifista, militante, crente, preso, músico, youtuber, entre várias outras coisas. Sempre carregando Caleb, seu melhor amigo tecnológico inseparável, onipotente e onipresente, que o proporciona “novas experiências sensoriais e novas configurações espaciais”. Rodson vagueia por diversos ambientes, entra em contato com diversos tipos de pessoas e segue sua jornada em busca por…? Água? Não sei bem, sei que ele não fala muito. Os letreiros, ações e narrações falam mais por ele. Também não demonstra com clareza o que sente. Ao espectador não é dado muito acesso a suas reflexões e pensamentos, o que o levam a agir e reagir. Talvez uma das questões dessa juventude que ele não dê conta de representar é uma necessidade de permanência e constância em certos aspectos da vida, uma garantia de sobrevivência. Entretanto, a própria ausência disso me parece dizer muito sobre este estado de espírito geral que se reflete em tela. No fim acho que Rodson procura e acaba conseguindo uma espécie de paz interior que ele não consegue e nem pretende expressar.

Rodson é uma viagem de reconfiguração de nosso senso audiovisual. Nesse sentido me lembra o cinema de Lincoln Péricles. Se entrarmos nele com definições e fundamentos prévios, alheios ao filme, não conseguiremos penetrá-lo. Assistir uma ficção blockbuster hollywoodiana na colada cria um contraste curioso: nosso olhar reconfigurado parece enxergar os mecanismos do filme “transparente” com tamanha clareza, distância, “opacidade”, que tal cinema fast food ultraprocessado parece não fazer sentido. Falar no binômio opacidade-transparência aqui me parece deslocado, talvez por essa ideia pressupor uma passividade do espectador. É um filme que exige um espectador ativo, que mergulhe dentro de sua viagem disforme, que esteja disposto a se questionar os limites das coisas. O que é cinema? O que é um filme? O que são as artes visuais? O que é videoarte? O que é videoclipe? O que é videogame? Rodson pouco se importa com esses limites e definições. Ele só é. 

Se, como foi dito na live da curadoria, a seleção desse ano reverbera a ruína de um mundo, a morte de seu cinema está incluída nela. Um cinema de consumo fácil, que se vende como entretenimento inocente enquanto administra e introjeta pensamentos hegemônicos em nossas subjetividades, vendendo um mundo dado. Talvez o maior mérito de RODSON ou (Onde o Sol Não Tem Dó) seja ir na contramão disso tudo, de ser escancarado, radical, de entender que a dicotomia forma-discurso é miragem. Forma é discurso. Radical em seu sentido primário, de ir às raízes, aos fundamentos, e a partir disso questioná-los, se arriscando a imaginar outras vertentes possíveis de se criar o próprio cinema e, com ele, o mundo.

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Pós-escrito (ou constelações possíveis):

Daria pra pensar Rodson junto com O Mundo Mineral (Guerreiro do Divino Amor). Acho que há algumas aproximações possíveis no modo como eles lidam com os discursos contemporâneos de uma forma bem zuera, que se baseia em radicalizar os termos políticos do presente ao absurdo. Se O Mundo Mineral faz isso num viés meio documentário antropológico, meio publicidade turística, que investiga o pensamento hegemônico, Rodson faz um salto futurista de imaginar o lado dos corpos e vivências não hegemônicas e sua resistência ao fascismo do status quo.

Além disso, o filme possui algumas semelhanças com “Minha bateria está fraca e está ficando tarde” (Rubiane Maia e Tom Nobrega, 2020). Os dois buscam refletir um pouco desse estado geral de caos contemporâneo a partir do uso de materiais de diversas origens sobrepostos, guiados por uma narração e organizados através de uma montagem que tenta ressignificá-los. Entretanto, enquanto em Rodson essa ideia é explorada a sua maneira exagerada, refletindo os absurdos da atualidade, no curta isso é feito de forma mais poética,  dando um tom melancólico que destoa em certos aspectos do que tem sido essa pandemia.

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